Os gatos, a rosa e o Rei
Os gatos, a rosa e o Rei
Gosto de fazer viagens sem roteiro. Chegar em uma cidade e andar pelas ruas sem compromisso, conhecendo a vizinhança, pegando indicações e fazendo o que der na telha. Acredito que assim se vive boas histórias.
Nas duas vezes em que fui a Buenos Aires foi assim. Fiquei no bairro Recoleta. De manhã, saía para tomar meu café da manhã: um sorvete de doce de leite na gelateria Freddo. A sorveteria ficava de frente para o Cemitério da Recoleta, também conhecido como Cemitério dos Gatos, pela quantidade de felinos que se vê por todos os lados. Depois que visitei esse cemitério, quase que diariamente eu ia tomar meu sorvete de café da manhã passeando entre túmulos e gatos.
Fiquei espantada com a quantidade de obras de arte. O metro quadrado deste cemitério é um dos mais caros de Buenos Aires. Ali repousam os restos mortais de personalidades famosas da política, cultura, arte e ciência, como. Talvez a personalidade mais conhecida e procurada por turistas seja Evita Peron.
Eu sentava nas escadinhas de algum mausoléu com meu sorvete na mão, ficava admirando o estilo Art Nouveau das tumbas. Outras contrastavam com estilo neo-gótico. Os túmulos trabalhados em mármore ou granito ostentavam também estátuas de bronze verde representando os moradores eternos. As moradas mais chiques tinham algum paisagismo na entrada e portãozinho com cadeado. Debaixo das sombras das árvores podia admirar toda a arquitetura e arte esculpida. Às vezes, ser muito antigo, algumas das obras não são assinadas. No passado muitos escultores e pintores de trabalhos como estes eram vistos apenas como alguém que executa o que foi solicitado e não como um artista. Outras mais recentes já são de artistas conhecidos. Sem dúvida, é um museu a céu aberto.
Alguns artistas e escultores que têm obras no Recoleta: Luis Perlotti, Carlos Romairone, Rene Sargent, Alfredo Bigatti, José Fioravanti, Jean Alexandre Falguière, Miguel Sansebastiano, Antonin Mercie, Luis Carriere, Pedro Zonza Briano, Alfredo Guttero e Tasso.
Eu ainda não era marchand, ou aquelas manhãs de contemplação no cemitério teriam sido manhãs de estudo.
Não que o turismo tumular seja um privilégio da capital da Argentina. O Cemitério de Père Lachaise, em Paris, recebe turistas há décadas. No Brasil, essa atividade tem se tornado comum também entre os viajantes. O Cemitério São João Batista no Rio e o Cemitério da Consolação, em São Paulo oferecem visita guiada.
Há quem considere o Cemitério da Recoleta assombroso, pois ali se pode ver caixões expostos há séculos. Alguns inclusive ao alcance das mãos, guardados por cadeados antiquíssimos. A meu ver, não é um passeio mórbido, e sim um mergulho na história da Argentina. Além do mais, se um cemitério pode ser considerado bonito, eu diria que este é lindo.
Mudando de pato para ganso, ou melhor, de arte sacra para a arte musical, lá estava eu, flanando pelas ruas de Buenos Aires, quando vi um pequeno cartaz anunciando um show do Roberto Carlos no Luna Park. Sempre tive vontade de assistir a um show do “Rei”, mas no Brasil os ingressos estão sempre esgotados. Parece impossível conseguir um bom lugar na plateia. O show seria naquele mesmo dia. Faltavam três horas para começar. Cheguei em casa frustrada por não ter pego um táxi até o local do show e verificado se ainda havia ingressos. Tomei um banho, me produzi como quem iria ver o Rei e fui para o Luna Park. Para minha surpresa era um estádio de vôlei, relativamente pequeno, e não um Maracanã.
Mesmo certa de que não haveria ingressos ou, se sobrasse algum, seria um lugar muito ruim, fui até a bilheteria e perguntei:
–Moço, ainda tem ingresso? Por favor, eu sou brasileira.
-E daí? Tu es brasileña y jo soy Argentino, disse o atendente, me olhando de baixo para cima, como se procurasse o foco nos seus óculos fundo de garrafa, já contando o troco e me passando um ingresso qualquer.
Perdi todo o rebolado e pensei que havia conseguido um péssimo lugar com a aquela tentativa frustrada de amolecer o coração do rapaz. Para quê fui falar que era brasileira? Era a pior coisa que poderia dizer para aquele argentino. Será que alguma brasileira havia destroçado seu coração? Ou seria birra de argentino com brasileiro? Será que ele havia falido apostando dinheiro numa partida de futebol Brasil x Argentina e o Brasil ganhou?
Para piorar a situação, o corpete que eu não vestia há anos estava apertando cruelmente minhas costelas e pulmão. Eu quase não conseguia respirar. Estava sufocada e faltavam poucos minutos para começar o show. Corri até uma lojinha mequetrefe perto do estádio e comprei uma blusa qualquer para conseguir voltar a respirar. Um alívio. Queria estar sensual e poderosa para o Rei no meu corpete preto assinado pela Glória Coelho, mas já estava roxa, parecendo o barney.
Quando entrei no estádio trajando minha camiseta com a frase “Te quiero Argentina”, tive uma surpresa e tanto. O meu lugar era o melhor que poderia existir: na primeira fileira, bem de frente para o Roberto Carlos. Ele não anda durante o show, fica praticamente parado no meio do palco, o tempo todo. E a poltrona dava vista justamente para o meio do palco! Melhor que aquilo, só se fosse sentada no colo do Rei.
Por que aquele argentino mal humorado havia me cedido o melhor lugar? Havia algum problema com a poltrona? Alguma desistência de última hora? Mistérios do acaso. Só sei que o show começou e a primeira rosa que o Roberto deu foi para mim. A princípio, achei que seria a única a receber uma rosa do Rei, mas no final do show ele joga centenas de rosas para as mulheres.
De qualquer maneira, eu fui a primeira. Roberto cantou em Espanhol, o que tira um pouco o romantismo, mas eu não podia reclamar. O dia de arte acabou bem. Começou com meu sorvete matinal do Cemitério dos Gatos e terminou com rosas vermelhas e as inesquecíveis canções do Rei.